A técnica da boleia
Depois de ter começado a guerra no ultramar, no inicio dos anos sessenta do século XX o Estado Português começou a recrutar todos os rapazes e mobilizá-los para a guerra. Apuravam todos, mesmo os que não fossem capazes de disparar uma espingarda iam para serviços auxiliares, eram os “básicos”, os que não sabiam fazer nada, de “económicas e vassoureiras” como eram apelidados.
Muitos dos militares sentiram-se em baixo e entraram em desanimo pelo facto de saberem que iam para a guerra e fez aumentar as saudades da família.
As despesas do Estado aumentaram em muito com as Forças Armadas.
Então surgiu o conceito de “fim-de-semana”. Começaram a mandar embora para casa todos os militares à sexta-feira à noite e teriam de regressar ao quartel até domingo à noite ou segunda feira de manhã a tempo de estar na formatura às oito horas. O Estado poupavam muito dinheiro em comida e ele matavam saudades da família.
Colocou-se depois outro problema, muitos dos militares não tinham dinheiro para as viagens, pelo que começaram a pedir boleia, dando inicio a uma onda de solidariedade para com eles.
Os Cabos-especialistas de FA até compuseram uma letra onde incluiam a referência às boleias:
Ó Cabo especialista,
mecânico, eletricista,
ou técnico de avião.
As corridas e noitadas,
boleias pelas estradas,
são tempos que já lá vão!
Pouco a pouco começaram a andar à boleia todos quantos se queriam deslocar mas não tinham dinheiro. Pedia-se boleia para não gastar o dinheiro da viagem, pedia-se boleia por não haver transporte público ou porque a hora dele era tardia e indo à boleia ganhava-se tempo…
Na região de Coimbra um traje académico era um bom indicio para arranjar boleia.
Eu fui um dos que fiz centenas de quilómetros à boleia.
Davam boleia os que gostavam de ajudar e que gostavam de companhia.
Uns conversavam sem parar contavam as histórias deles e gostavam de saber as nossas, outros perguntavam “Para onde vai?” e não abriam mais a boca até ao fim da viagem. Os camionistas, porque gostavam de ter companhia, bons dadores de boleia, quase todos bons conversadores.
Também aconteciam declarações insólitas do tipo: “Nunca dei boleia a ninguém, não costumo dar boleia e não sei porque parei e lhe dei boleia!” ao que eu respondi “ Fico agradecido por isso e só quero boleia até tal sitio, não se preocupe com mais nada” outro disse-me assim: “Eu dou-lhe boleia mas não tente qualquer coisa contra mim, porque eu enfio a carro contra uma barreia ou por ela abaixo!”
Mas para pedir boleia à beira da estrada, onde estavam muitos rapazes, (raramente aparecia um casal e muito menos uma rapariga só), havia um certo procedimento. O último a chegar ia para o fim da fila e havia um distanciamento de 40 ou 50 metros uns dos outros. Por ir para o fim da fila não queria dizer que não pudesse apanhar boleia primeiro. Quem dava boleia, dava a quem achava que devia. À medida que os da frente fossem apanhando boleia a fila ia avançando. Às vezes estava-se tão próximo uns dos outros que quando um carro parava não se sabia bem para quem era.
Um amigo meu já empregado, contou que quando resolveu fazer um curso superior e que tinha de se deslocar a uma cidade para ia às aulas, ás vezes procurava boleia sobretudo para ganhar tempo. Com boa apresentação e pastinha na mão, está certa altura a pedir boleia. Um certo individuo parou mas de tal forma que ficou mais perto do “pedinte” que estava atrás dele. Este abeirou-se do carro e o meu amigo ficou parado. O senhor do carro negou-lhe a boleia: “Desculpe, eu não lhe dou boleia a si dou ao senhor que está lá atrás” Parece que o rapaz usou de Fair-play . “Pode vir que a boleia é para si”.
Havia sitos onde não era difícil arranjar boleia Por exemplo a rotunda do relógio em Lisboa para vir no sentido norte. Para mim servia vir por Pombal ou por Tomar, por isso arranjei uma cartolina onde tinha escrito Pombal e Tomar e na parte de trás Lisboa, andava sempre no saco pronta para utilizar. Não podia ter um cartaz a pedir boleia para Sarzedas ou mesmo Figueiró dos Vinhos, nunca mais me safava. A Shell em Pombal (actualmente Repsol) no sentido Lisboa. De Coimbra para Figueira da Foz, depois de passar o túnel que ainda hoje existe, por baixo da linha, junto à estação Coimbra-B, a sequencia de carros era continua já em 1971/72 que nós brincávamos com a situação “Só aceito boleia em carro que tenha leitor de cassetes”.
Algumas boleias com história:
Boleia de Cernache do Bonjardim para Castelo Branco e as aventuras de um dia. Um camião carregado de tijolos, o motorista Sr. Adriano, bom conversador disse-me só vou até … … Sarzedas (de Cast. Branco) ou Sobreira Formosa ou Taberna Seca não me lembro...Serve? Claro, depois continuo, disse eu. Lá seguimos pela antiga estrada de curva e contra curva, de vagar e devagarinho.
A certa altura já depois de Proença-a-Nova, ouve-se um barulho e diz o motorista com ar de poucos amigos: Um furo! Acompanhado duns quantos atributos que não vou dizer aqui. Parou logo que foi possível e toca a mudar o pneu. Podem imaginar o que é trocar um pneu num camião carregado de tijolo. Hoje ninguém troca pneus em camiões...gostava de ver algumas motoristas. Coisas impossíveis!
Bom, fiz os possíveis por dar a minha ajuda, mudou-se o pneu seguimos viagem talvez com mais de meia hora de atraso. À frente numa tasca, bebemos um copo e lavamos as mãos. Antes de partirmos ele foi “ver qualquer coisa” lá atrás, com a dona da tasca, coisa rápida não mais de cinco minutos e voltamos à estrada. Já em andamento diz o motorista:
“Olhe, já vou passar em Castelo Branco, a porcaria do furo estragou-me os planos. “
“Certo, para mim tudo bem.” Era cedo, antes de almoço. Se quiser pode ir comigo a Silvares eu tenho que voltar por CB e deixo-o lá ficar, assim sempre vou se companhia. O meu “trabalho” em Castelo Branco também só começava à tardinha. Lá vou eu passear a Silvares...resultado acabei por ajudar a descarregar os tijolos um a um, não era como agora com paletes e monta cargas no caso desmonta cargas e o motorista também vergou a mola, também não era como agora. Agora os motorista estão ao volante nem saem à rua para não se constiparem e dizem: Eu sou motorista, e não ajudante.
Voltámos, fiquei em Castelo Branco. Por causa do furo o homem perdeu o “affaire” que tinha combinado e eu ganhei a boleia até onde queria.
Mais tarde estava eu na EN 1 frente às bombas da Shell em Pombal, um sitio privilegiado para pedir boleia para Lisboa. Reparei que passou um citroen GS matricula espanhola, com um casal na casa dos trinta anos talvez, mas passou e não deu boleia. Passados cinco minutos vejo vir o mesmo carro em sentido contrario dá a volta junto às bombas e vira no sentido sul, pára junto a mim e diz “Vamos a Estoril te puedes quedar en Lisboa, puedes entrar” . Aceitei mas fui a pensar no caso, porque é que eles voltaram? Chegamos em frente ao mosteiro da Batalha e eles pararam o carro. Ainda havia por ali um espaço onde se podia estacionar, fora do alcatrão e podia-se descer a barreira e atravessar até ao convento. Pegaram maquina fotográfica “quiero tomar algunas fotos volveremos pronto” atravessaram a estrada desceram a barreira e deixaram-me dentro do carro. Eu ai desconfiei! De repente passaram-me muitas ideias pela cabeça...pelo sim pelo não, peguei no meu saquinho de lona, que tinha comprado na feira da ladra, onde transportava sempre as coisas mínimas que me faziam falta, coloquei-o ao ombro, sai do carro e fiquei a uns cinco ou dez metro ao lado, a ver onde paravam as modas. Passados poucos minutos voltaram… disseram: “vamos”. E lá continuamos viagem. Deixaram-me no fim da 2ª circular, junto à Buraca, a cerca de um Km de casa. Despedi-me e agradeci com o meu “obrigadissimo”.
Outra altura, na rotunda do relógio, saída para 2ª circular com sequencia para o autoestrada. Na época havia o autoestrada do Estoril e este para norte, só até Vila Franca de Xira. Era de manhâ, suponho que sexta feira, vinha para casa, para Sarzedas. Parou junto a mim um carro com dois sarzedenses, atualmente já falecidos, Sr. Afonso dos Reis e o Sr. Manuel Alves.
Apetecia-me dar pulos e gritar, mas claro não podia… Seria aquele “Yiiiiieeees!” Boleia de Lisboa até casa.
Em Vila Franca, pagaram a portagem na ponte, naturalmente, que continuaria a ser paga durantes mais uns anos, seguem pela reta do Cabo e tomaram a direção norte; era o melhor itinerário na altura porque pela N1 até Pombal tinha muito transito e por Santarém a estrada estava muito esburacada.
Primeira paragem, Quinta da Alorna, entrada de Almeirim, o porta bagagens do carro vinha cheio de “palhinhas” vazios. Encheram os garrafões na adega, pagaram e continuamos até a zona da praça de touros.
Vamos almoçar!
Está certo, eu espero aqui à sombra, disse eu.
Não senhor, tu vens almoçar connosco. Bem...Eu tinha dinheiro para pagar o meu almoço, não teria para pagar três almoços. Se eu vou à boleia eu é que deveria pagar...
Fiquei “encostado”! Sem saber o que fazer.
Disse então: Eu pago o meu almoço!
Só pagamos no fim, disseram.
Agora vamos almoçar.
Lá fomos os três, e no fim não me deixaram pagar nada. Obrigado.
Voltámos ao carro, seguimos viagem até à saida de Almeirim. Paragem numa venda de melão. Os Senhores compraram melão até não haver sítio, por cima dos palhinhas, cheios de vinho no porta bagagens, por baixo dos bancos e acho que se eu não viesse lá ainda teriam trazido mais.
Chegámos à Sarzedas sãos e salvos.
Boleia onde apanhei um susto. De Tomar para Lisboa. Um casal novo, talvez pouco mais velhos que eu, na casa dos vinte, um fiat 124 e a menina pendurada no pescoço dele que ia a conduzir, não fosse ele abrir a porta e sair! Seguiram pela Azinhaga, Reguengo do Alviela, Vale Figueira e depois tomaram a estrada nacional. Foi para mim a primeira vez que passei por esta estrada.
Depois do Reguengo, havia uma ponte, antiga que ainda lá está mas inutilizável, como muitas outras tinha uma elevação no centro que não deixava ver o outro lado e só havia espaço para um carro passar. Um pouco antes de entrar na dita ponte diz o rapaz para ela: “Vamos voar!” Ela largou-o mas colocou as mãos no tablier, ele acelerou o que pode, de tal forma que fomos mesmo pelo ar e aterrámos do outro lado quase à saída da ponte. Eu encolhido no banco de trás, só pensei na sorte que tivemos em não vir outro carro em sentido contrário.